PortuguêsInterpretação de textos
- (FUMARC 2018)
TEXTO I:
Nossa Senhora dos Destoantes
Luís Fernando Veríssimo
A pequena Capela de Nossa Senhora do Rosário do Padre Faria é uma das tantas joias arquitetônicas de Ouro Preto. O exterior despojado não prepara o visitante para a opulência barroca do interior. O campanário fica afastado do corpo da igreja, como a “casinha” numa morada sem banheiro, e nada tem de imponente. Os sinos da Capela de Padre Faria badalam em concerto com os outros sinos da região, cantando as horas e os eventos, e não soam nem melhor nem pior do que os outros. Mas os sinos da Capela do Padre Faria têm uma história diferente dos outros.
Quando Tiradentes foi enforcado e esquartejado no Rio de Janeiro todos os outros sinos celebraram a notícia. Afinal, tratava-se da execução de um traidor, de um inimigo da sociedade. Os sinos de Ouro Preto festejaram o castigo exemplar de um réprobo e o triunfo da legalidade sobre a rebeldia. Mesmo que o toque festivo não tivesse sido recomendado pela Coroa, a celebração se justificaria. Mas os sinos da Capela do Padre Faria dobraram Finados. Pela primeira e única vez na história, talvez, os sinos da Capela do Padre Faria destoaram do concerto. Tocaram, sozinhos, uma batida fúnebre pelo martírio de Tiradentes.
Não conheço bem a história e não sei o que motivou as badaladas subversivas. Um pedido de secretos simpatizantes da Inconfidência? Apenas uma manifestação de piedade cristã? Um sineiro bêbado? Não sei. Minha tese preferida é que alguém responsável pelos sinos teve um vislumbre histórico. Teve a presciência que ninguém mais teve e ordenou o toque plangente, em homenagem precoce ao futuro herói e pelo ocaso do poder colonial que seu sacrifício desencadearia.
Nossa Senhora do Rosário serviria como padroeira, não necessariamente de quem consegue adivinhar a História, mas de quem entende o momento que está vivendo ou destoa da maioria, com ou sem razão. Destoantes deveriam ir regularmente em romaria à pequena capela e pedir a bênção dessa Nossa Senhora do Contexto Maior, para melhor poder enfrentar a maioria que badala o que não tem importância e o fato errado e menospreza qualquer batida diferente.
Os outros sineiros de Ouro Preto não tinham como saber que estavam festejando a morte de um herói. Faltava-lhes a perspectiva histórica para entender o momento e só cumpriram o que se esperava deles. Estão perdoados. Mas que nos sirvam de lição.
(Disponível em https://jornalggn.com.br/noticia/nossa-senhora-dos-destoantes-por-luis-fernando-verissimo . Acesso em: 9 fev. 2018)
“O contexto maior não absolve, exatamente, o contexto imediato, a triste realidade de revelações e escândalos de todos os dias, mas consola. Nossa inspiração deve ser o historiador francês Fernand Braudel, que — principalmente no seu monumental estudo sobre as civilizações do Mediterrâneo — ensinou que, para se entender a História, é preciso concentrar-se no que ele chamava de lalonguedurée , que é outro nome para o contexto maior. Braudel partia do particular e do individual para o social e daí para o nacional e o generacional, se é que existe a palavra, e na sua história da região, o indivíduo e seu cotidiano eram reduzidos a “poeira” (palavra dele também, que incluía até papas e reis) em contraste com a longuedurée , o longo prazo da história verdadeira. Assim na sua obra se encontram as minúcias da vida diária nos países do Mediterrâneo mas compreendidas sub specieaeternitatis , do ponto de vista da eternidade, que é o contexto maior pedante.”
(Disponível em https://jornalggn.com.br/noticia/o-contexto-maior-por-luis-fernando-verissimo . Acesso em 09 fev. 2018).
O segmento em destaque também foi produzido por Luís Fernando Veríssimo, em sua crônica, de fevereiro de 2015, O contexto maior , título retomado no trecho da crônica Nossa Senhora dos Destoantes, publicada em 09 de fevereiro de 2018 em: “Destoantes deveriam ir regularmente em romaria à pequena capela e pedir a bênção dessa Nossa Senhora do Contexto Maior, para melhor poder enfrentar a maioria que badala o que não tem importância e o fato errado e menospreza qualquer batida diferente”.
Sobre essa referência de O contexto maio r em Nossa Senhora dos Destoantes, pode-se afirmar que
A) constitui-se como um elemento incoerente na composição de 2018, pelo fato de ironizar o comportamento de pessoas conservadoras.
B) indica que a compreensão de Nossa Senhora dos Destoantes é determinada pela leitura de outras produções do cronista, sob pena de se perder a intencionalidade.
C) sugere que a leitura do gênero crônica se faz mediante a leitura de outras produções de mesmo gênero, em especial as construídas pelo mesmo cronista.
D) tem sua importância comprometida pela distância temporal entre as publicações, pois a crônica é uma produção que remete a uma situação específica.
E) trata-se de um conhecimento prévio que contribui para a percepção da intencionalidade de criticar certo comportamento político da sociedade atual.
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