PortuguêsInterpretação de textos (3)
- (FCC 2015)
A morte e a morte do poeta
Ao ler o seu necrológio no jornal outro dia, o pianista Marcos Resende primeiro tratou de verificar que estava vivo, bem vivo. Em seguida gravou uma mensagem na sua secretária eletrônica: “Hoje é 27 e eu não morri. Não posso atender porque estou na outra linha dando a mesma explicação”. Quando li esta nota, me lembrei de como tudo neste mundo caminha cada vez mais depressa. Em 1862, chegou aqui a notícia da morte de Gonçalves Dias.
O poeta estava a bordo do Grand Condé havia cinquenta e cinco dias. O brigue chegou a Marselha com um morto a bordo. À falta de lazareto, o navio estava obrigado à caceteação da quarentena. Gonçalves Dias tinha ido se tratar na Europa e logo se concluiu que era ele o morto. A notícia chegou ao Instituto Histórico durante uma sessão presidida por d. Pedro II. Suspensa a sessão, começaram as homenagens ao que era tido e havido como o maior poeta do Brasil.
Suspeitar que podia ser mentira? Impossível. O imperador, em pleno Instituto Histórico, só podia ser verdade. Ofícios fúnebres solenes foram celebrados na Corte e na província. Vinte e cinco nênias saíram publicadas de estalo. Joaquim Serra, Juvenal Galeno e Bernardo Guimarães debulharam lágrimas de esguicho, quentes e sinceras. O grande poeta! O grande amigo! Que trágica perda! As comunicações se arrastavam a passo de cágado. Mal se começava a aliviar o luto fechado, dois meses depois chegou o desmentido: morreu, uma vírgula! Vivinho da silva.
A carta vinha escrita pela mão do próprio poeta: “É mentira! Não morri, nem morro, nem hei de morrer nunca mais!” Entre exclamações, citou Horácio: “Não morrerei de todo.” Todavia, morreu, claro. E morreu num naufrágio, vejam a coincidência. Em 1864, trancado na sua cabine do Ville de Boulogne, à vista da costa do Maranhão. Seu corpo não foi encontrado. Terá sido devorado pelos tubarões. Mas o poeta, este de fato não morreu .
[...]
(Adaptado de: RESENDE, Otto Lara. Bom dia para nascer . São Paulo: Cia das Letras, 2011, p.107-8)
No texto, o autor contrapõe fundamentalmente
A) as boas condições do porto de Marselha, em território francês, às péssimas condições do porto brasileiro localizado no Maranhão, perto do qual o navio Ville de Boulogne acabou por naufragar.
B) a demora com que a notícia da suposta morte de Gonçalves Dias, no século XIX, pôde ser contestada pelo poeta à rapidez com que o pianista Marcos Resende, contemporâneo do cronista, pôde contestar a própria morte.
C) a comoção com que foi recebida a notícia da suposta morte do poeta Gonçalves Dias à indiferença com que se recebeu a notícia da morte do pianista Marcos Resende, buscando-se esclarecê-la com um simples telefonema.
D) a resistência do navio Grand Condé , onde Gonçalves Dias pôde permanecer em segurança por mais de cinquenta dias, à fragilidade do Ville de Boulogne , que levou pouco tempo para naufragar na costa do Maranhão.
E) a banalização das notícias em seu próprio tempo, mesmo as mais trágicas, à solenidade com que eram dadas no século XIX, muitas vezes em sessões no Instituto Histórico, com a eventual presença do próprio Imperador.
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