PortuguêsCoesão e coerência
- (FCC 2018)
A retórica de que se trata aqui é essa metalinguagem (cuja linguagem-objeto foi o “discurso”) que reinou no Ocidente do século V a.C. até o século XIX d.C. Esse discurso sobre o discurso comportou várias práticas, presentes, simultânea ou sucessivamente, segundo as épocas, na “Retórica”, entre elas:
1. uma técnica, isto é, uma “arte”, no sentido clássico da palavra – arte da persuasão, conjunto de preceitos cuja aplicação permite convencer o ouvinte do discurso (e mais tarde, o leitor da obra), mesmo quando aquilo de que se deve persuadi-lo seja “falso”;
2. um ensinamento – de início transmitida por vias pessoais, inseriu-se rapidamente em instituições de ensino;
3. uma ciência, ou, em todo caso, uma protociência − um campo de observação autônomo delimitando certos fenômenos, a saber, os “efeitos” de linguagem;
4. uma moral – sendo um sistema de “regras”, a retórica está penetrada da ambiguidade da palavra: é ao mesmo tempo um manual de receitas, animadas por uma finalidade prática, e um Código, um corpo de prescrições morais, cuja função é vigiar (isto é, permitir e limitar) os “desvios” da linguagem passional;
5. uma prática social – a Retórica é essa técnica privilegiada (pois que é preciso pagar para adquiri-la) que permite à classe dirigente garantir para si a propriedade da palavra. Sendo a linguagem um poder, decidiu-se das regras seletivas de acesso a esse poder, constituindo-o em pseudociência, fechada para “aqueles que não sabem falar”, tributária de uma iniciação dispendiosa (nascida há 2500 anos de processo de propriedade, a retórica se esgota e morre na classe de “retórica”, consagração iniciática da cultura burguesa).
A Retórica (como metalinguagem) nasceu do processo de propriedade. Por volta de 485 a. C., dois tiranos sicilianos, Géron e Hiéron, operaram deportações, transferências de população e expropriações, para povoar Siracusa e distribuir lotes aos mercenários; quando foram derrubados por um levante democrático e se quis voltar ao ante qua, houve inumeráveis processos, pois os direitos de propriedade estavam obscurecidos. Esses processos eram de um tipo novo e mobilizavam grandes júris populares, diante dos quais, para convencer, era preciso ser “eloquente”.
Essa eloquência, participando ao mesmo tempo da democracia e da demagogia, do judicial e do político (o que se chamou depois de deliberativo), constituiu-se rapidamente em objeto de ensino. Os primeiros professores dessa nova disciplina foram Empédocles de Agrigento, Córax, aluno seu de Siracusa (o primeiro a cobrar pelas aulas), e Tísias. Esse ensino passou com igual rapidez para a Ática (depois das guerras médicas), graças às contestações dos comerciantes, que moviam processos conjuntamente em Siracusa e em Atenas: a retórica já é, em parte, ateniense desde meados do século V.
Córax coloca já as cinco grandes partes da oratio, que formarão durante séculos o “plano” do discurso oratório: 1. exórdio; 2. narração (relação dos fatos); 3. argumentação ou prova; 4. digressão; 5. epílogo. É fácil verificar que, ao passar do discurso judicial para a dissertação escolar, esse plano conservou a sua organização principal: uma introdução, um corpo demonstrativo, uma conclusão .
(Adaptado de: BARTHES, Roland. “A Antiga Retórica”, A Aventura Semiológica , Lisboa, Edições 70, 1987)
Constitui estritamente resumo do texto o que consta em:
A) Com o acirramento das disputas por terra na Antiguidade, importa perceber como a retórica, surgida no século V a.C., deve ser analisada como uma dinâmica política com reflexos na estrutura da sociedade contemporânea.
B) A retórica, enquanto conjunto de preceitos e práticas, tem origem na Antiguidade, em disputas de poder e propriedade no século V a.C., mantendo-se viva até o século XIX, com reflexos ainda hoje na estruturação dos textos escolares.
C) O desenvolvimento da retórica, em um arco temporal de mais de vinte séculos, oferece uma possibilidade de compreensão do desenvolvimento dos mais variados discursos, de jurídicos e educacionais a literários e religiosos, até o presente.
D) Comprometidos com o ensino da retórica, Empédocles e seu aluno Córax, fundaram as bases dessa disciplina que, tendo nascido na Antiguidade, nem por isso deixa de proporcionar ainda hoje o que há de mais interessante nas artes ligadas ao discurso.
E) Embora surja na Sicília, a retórica estende-se a Atenas, onde passa a ser cultivada nas escolas como ciência e como moral, enquanto reguladora do discurso, característica a que se deve atentar ao analisar textos antigos.
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