PortuguêsInterpretação de textos (2)
- (CONSULPLAN 2017)
História de bem-te-vi
Com estas florestas de arranha-céus que vão crescendo, muita gente pensa que passarinho é coisa de jardim
zoológico; e outras até acham que seja apenas antiguidade de museu. Certamente chegaremos lá; mas por enquanto
ainda existem bairros afortunados onde haja uma casa, casa que tenha um quintal, quintal que tenha uma árvore. Bom
será que essa árvore seja a mangueira. Pois nesse vasto palácio verde podem morar muitos passarinhos.
Os velhos cronistas desta terra encantaram-se com canindés e araras, tuins e sabiás, maracanãs e “querejuás todos
azuis de cor finíssima...”. Nós esquecemos tudo: quando um poeta fala num pássaro, o leitor pensa que é leitura...
Mas há um passarinho chamado bem-te-vi. Creio que ele está para acabar.
E é pena, pois com esse nome que tem – e que é a sua própria voz – devia estar em todas as repartições e outros
lugares, numa elegante gaiola, para no momento oportuno anunciar a sua presença. Seria um sobressalto providencial e
sob forma tão inocente e agradável que ninguém se aborreceria.
O que leva a crer no desaparecimento do bem-te-vi são as mudanças que começo a observar na sua voz. O ano
passado, aqui nas mangueiras dos meus simpáticos vizinhos, apareceu um bem-te-vi caprichoso, muito moderno, que se
recusava a articular as três sílabas tradicionais do seu nome, limitando-se a gritar: “...te-vi! ...te-vi”, com a maior
irreverência gramatical. Como dizem que as últimas gerações andam muito rebeldes e novidadeiras, achei natural que
também os passarinhos estivessem contagiados pelo novo estilo humano.
Logo a seguir, o mesmo passarinho, ou seu filho ou seu irmão – como posso saber, com a folhagem cerrada da
mangueira? – animou-se a uma audácia maior. Não quis saber das duas sílabas, e começou a gritar apenas daqui, dali,
invisível e brincalhão: “...vi! ...vi!...” o que me pareceu divertido, nesta era do twist.
O tempo passou, o bem-te-vi deve ter viajado, talvez seja cosmonauta, talvez tenha voado com o seu team de
futebol – que se não há de pensar de bem-te-vis assim progressistas, que rompem com o canto da família e mudam o
leme dos seus brasões? Talvez tenha sido atacado por esses crioulos fortes que agora saem do mato de repente e
disparam sem razão nenhuma no primeiro indivíduo que encontram.
Mas hoje ouvi um bem-te-vi cantar. E cantava assim: “Bem-bem-bem...te –vi!” Pensei: “É uma nova escola poética
que se eleva da mangueira!...” Depois, o passarinho mudou. E fez: “Bem-te-te-te...vi!” Tornei a refletir: “Deve estar
estudando a sua cartilha... Estará soletrando...” E o passarinho: “Bem-bem-bem...te-te-te... vi-vi-vi!”
Os ornitólogos devem saber se isso é caso comum ou raro. Eu jamais tinha ouvido uma coisa assim! Mas as
crianças, que sabem mais do que eu, e vão diretas aos assuntos, ouviram, pensaram e disseram: “Que engraçado! Um
bem-te-vi gago!”
(É: talvez não seja mesmo exotismo, mas apenas gagueira...)
(MEIRELES, Cecília. 1901-1964 – Escolha o seu sonho: (crônicas) – 26ª ed. – Rio de Janeiro: Record, 2005.)
“... apareceu um bem-te-vi caprichoso, muito moderno, que se recusava a articular as três sílabas tradicionais do seu nome, limitando-se a gritar: “...te vi! ...te-vi!, com a maior irreverência gramatical .” (5º§) A narradora fala de irreverência gramatical porque se trata
A) de uma inadequação vocabular.
B) do emprego de linguagem coloquial.
C) de um erro de concordância nominal.
D) de uma impropriedade do uso do pronome átono.
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