PortuguêsFiguras de linguagem (2)
- (IBADE 2019)
O TRABALHO ENOBRECE
"Empregada doméstica. Dois anos de experiência em carteira. Para lavar, passar e cozinhar." Roteiro de empregos (num dia qualquer).
Ela nunca lia os anúncios classificados. Não precisava: casada com um rico empresário, não sabia o que era procurar emprego. Mas um dia em que estava particularmente entediada, caiu-lhe nas mãos aquela seção do jornal e, por pura curiosidade, começou a percorrer os anúncios que pediam empregada doméstica.
De repente, a surpresa: no meio daquelas frases secas, convencionais, algo lhe chamou a atenção: um número de telefone. Era de sua amiga Zélia. Que estava, ela sabia, sem empregada.
De imediato, uma ideia lhe ocorreu: oferecer-se para a vaga de doméstica na casa de Zélia. Pegou o telefone e ligou. Ocupado. Claro, com esse desemprego... Pensou em desistir, mas agora que começara, iria até o fim. Continuou discando, até que, por fim, alguém atendeu. "Pronto", disse, do outro lado, uma impaciente Zélia.
- É aí que estão procurando empregada? - perguntou, disfarçando a voz. Seu prévio treinamento como atriz amadora ajudava, mas mesmo assim estava em dúvida: funcionaria? Funcionou. Sem nada desconfiar, Zélia respondeu que sim, estava procurando doméstica. E começou a fazer perguntas. As perguntas habituais neste caso: "Você tem referências? De quanto tempo? Você cozinha bem? Você é casada? Tem filhos?".
Ela ia respondendo. No começo, animada, com muita facilidade. Sim, tinha boas referências, vários patrões poderiam dar testemunho de sua conduta irrepreensível. Sim, cozinhava muito bem. Não, não era casada. Não, não tinha filhos (o que era verdade).
Por alguma razão a conversa se prolongou e, à medida que se prolongava, a angústia dela ia aumentando. Uma angústia inexplicável - afinal, era uma brincadeira - mas avassaladora. Ao mesmo tempo, não conseguia interromper aquele inexorável fluxo de perguntas e respostas. Por alguma misteriosa razão, tinha introjetado o papel. O espírito de alguma doméstica nela se incorporara - e não saía. E quando Zélia perguntou se era branca, começou a chorar e bateu o telefone.
Chorou por muito tempo. Finalmente levantou-se, enxugou as lágrimas. Tinha tomado uma decisão e a cumpriu: no mesmo dia, despediu a empregada.
(SCLIAR, Moacyr. Acesso em: https://www1.folha.uol.com.br/fsp/cotidian/ff0105200010.htm)
A figura de linguagem que pode ser associada ao texto é a (o):
A) Hipérbole, já que a personagem principal, embora seja caricata, é suavizada.
B) Ironia, pois a patroa, que não trabalhava, tem uma crise de culpa por explorar a força de trabalho da empregada, mas acaba a demitindo.
C) Paradoxo, afinal, é impossível que o trabalho, de fato, enobreça alguém.
D) Metáfora, pois é uma obra de ficção sem qualquer semelhança com a realidade.
E) Eufemismo, já que a história narrada intensifica aquilo que se vê na sociedade.
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