PortuguêsNoções gerais de compreensão e interpretação de texto (28)
- (CEFET-MG 2022)
Se o projeto deste livro [ O tempo e o cão: a atualidade das depressões ]
se deve ao início de algumas análises com pessoas depressivas, o
processo mental de sua escrita inaugurou-se no dia em que atropelei
um cachorro. Foi um acidente anunciado, com poucos segundos
de antecipação, e mesmo assim inevitável, por conta da velocidade
normal dos acontecimentos na atualidade. Mal nos damos conta dela,
a banal velocidade da vida, até que algum mau encontro venha revelar
a sua face mortífera. Mortífera não apenas contra a vida do corpo, em
casos extremos, mas também contra a delicadeza inegociável da vida
psíquica. Naquele dia, acossada pelos caminhões que vinham atrás
de mim em uma autoestrada, ainda pude ver pelo retrovisor que o
animal ferido conseguiu atravessar o resto da rodovia e embrenharse no mato. Em questão de segundos, não escutei mais seu uivo de
dor nem pude conferir o dano que lhe fiz. O cão deixou de existir em
meu campo perceptivo, assim como poderia ter sido definitivamente
forcluído do registro da minha experiência; seu esquecimento se
somaria ao apagamento de milhares de outras percepções instantâneas
às quais nos limitamos a reagir rapidamente para, em seguida, com
igual rapidez, esquecê-las.
[...]
Poucos minutos depois do acidente, ainda na estrada, comecei a
esboçar em pensamento um texto a respeito da brutalidade da relação
dos sujeitos contemporâneos com o tempo. Do mau encontro que
poderia ter acabado com a vida daquele cão, restou uma ligeira mancha
escura no meu para-choque. Foi tão rápido o choque que não teria se
transformado em acontecimento se eu não sentisse a necessidade de
recorrer à cena diversas vezes, em pensamento, ao longo dos vinte
quilômetros que ainda me faltavam percorrer até o meu destino.
KEHL, Maria Rita. O tempo e o cão: a atualidade das depressões. São Paulo: Boitempo, 2009. p.
16-17. (fragmento).
Glossário:
Forcluído: excluído.
A experiência vivida por Maria Rita Kehl permitiu-lhe desenvolver a tese de que o
A) relacionamento entre os sujeitos contemporâneos é brutal.
B) encontro com a morte revela a necessidade de valorizar a vida.
C) homem contemporâneo é insensível aos sentimentos do animal.
D) crescente número de mortes no trânsito se deve à presença de caminhões.
E) ritmo veloz da vida moderna impede que o homem reflita sobre suas vivências.
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