PortuguêsCrase (3)
- (CESPE / CEBRASPE 2021)
É o discurso que nos liberta e é o discurso que estabelece
os limites da nossa liberdade e nos impulsiona a transgredir e
transcender os limites — já estabelecidos ou ainda a ser
estabelecidos no futuro. Discurso é aquilo que nos faz enquanto
nós o fazemos. E é graças ao discurso, e seu ímpeto endêmico de
espreitar além das fronteiras que ele estabelece para a sua própria
liberdade, que nosso estar no mundo é um processo de vir a ser
perpétuo — incessante e infinito: nosso vir a ser e o vir a ser do
nosso “mundo da vida” — juntar-se, misturar-se, embora sem
solidificar, estreita e inseparavelmente, entrançados e
entrelaçados, e compartilhando nossos respectivos sucessos e
infortúnios, ligados um ao outro para o melhor e para o pior,
desde o momento de nossa concepção simultânea até que a morte
nos separe.
O que nós chamamos de “realidade”, quando entramos em
um ânimofilosófico, ou “os fatos da questão” quando seguimos
obedientemente as instâncias da doxa, é tecido de palavras.
Nenhuma outra realidade nos é acessível: não acessamos o
passado “como ele realmente aconteceu”, o qual Leopold von
Ranke celebremente conclamou (instruiu) seus colegas
historiadores do século XIX a recuperar. Comentando sobre a
história de Juan Goytisolo a respeito de um velho, Milan Kundera
salienta que a biografia — qualquer biografia que tente ser o que
seu nome sugere — é, e não poderia deixar de ser, uma lógica
artificial inventada, imposta retrospectivamente a uma sucessão
incoerente de imagens, reunida pela memória de partículas e
fragmentos. Ele conclui que, em total oposição às presunções do
senso comum, o passado compartilha com o futuro a ruína
incurável da irrealidade — esquivando-se/evadindo-se
obstinadamente, como ambos o fazem, das redes tecidas de
palavras movidas pela lógica. Não obstante, essa irrealidade é a
única realidade a ser captada e possuída por nós, que “vivemos
em discurso como o peixe na água”.
Zygmunt Bauman e Riccardo Mazzeo. O elogio da
literatura . Zahar. Edição do Kindle (com adaptações).
Julgue o item que se segue, com relação a aspectos linguísticos do texto precedente.
No trecho “quando seguimos obedientemente as instâncias
da doxa” (segundo parágrafo), o sinal indicativo de crase
poderia ser inserido em “as” — escrevendo-se às —, sem
prejuízo da correção gramatical do texto, uma vez que o
emprego desse sinal é facultativo nesse caso.
C) Certo
E) Errado
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