PortuguêsFiguras de linguagem (2)
- (Instituto Consulplan 2019)
Mudança
Na planície avermelhada, os juazeiros alargavam duas
manchas verdes. Os infelizes tinham caminhado o dia inteiro,
estavam cansados e famintos. Ordinariamente andavam
pouco, mas como haviam repousado bastante na areia do rio
seco, a viagem progredira bem três léguas. Fazia horas que
procuravam uma sombra. A folhagem dos juazeiros apareceu
longe, através dos galhos pelados da catinga rala.
Arrastaram-se para lá, devagar, Sinhá Vitória com o
filho mais novo escanchado no quarto e o baú de folha na
cabeça, Fabiano sombrio, cambaio, o aió a tiracolo, a cuia
pendurada numa correia presa ao cinturão, a espingarda de
pederneira no ombro. O menino mais velho e a cachorra
Baleia iam atrás.
Os juazeiros aproximaram-se, recuaram, sumiram-se. O
menino mais velho pôs-se a chorar, sentou-se no chão.
– Anda, condenado do diabo, gritou-lhe o pai. Não
obtendo resultado, fustigou-o com a bainha da faca de ponta.
Mas o pequeno esperneou acuado, depois sossegou, deitou-se,
fechou os olhos. Fabiano ainda lhe deu algumas pancadas e
esperou que ele se levantasse. Como isto não acontecesse,
espiou os quatro cantos, zangado, praguejando baixo.
A catinga estendia-se, de um vermelho indeciso salpicado
de manchas brancas que eram ossadas. O voo negro dos
urubus fazia círculos altos em redor de bichos moribundos.
– Anda, excomungado.
O pirralho não se mexeu, e Fabiano desejou matá-lo.
Tinha o coração grosso, queria responsabilizar alguém pela
sua desgraça. A seca aparecia-lhe como um fato necessário
– e a obstinação da criança irritava-o. Certamente esse
obstáculo miúdo não era culpado, mas dificultava a marcha,
e o vaqueiro precisava chegar, não sabia onde.
Tinham deixado os caminhos, cheios de espinho e
seixos, fazia horas que pisavam a margem do rio, a lama seca
e rachada que escaldava os pés.
Pelo espírito atribulado do sertanejo passou a ideia de
abandonar o filho naquele descampado. Pensou nos urubus,
nas ossadas, coçou a barba ruiva e suja, irresoluto, examinou os
arredores. Sinhá Vitória estirou o beiço indicando vagamente
uma direção e afirmou com alguns sons guturais que estavam
perto. Fabiano meteu a faca na bainha, guardou-a no cinturão,
acocorou-se, pegou no pulso do menino, que se encolhia, os
joelhos encostados ao estômago, frio como um defunto. Aí a
cólera desapareceu e Fabiano teve pena. Impossível abandonar
o anjinho aos bichos do mato. Entregou a espingarda a Sinhá
Vitória, pôs o filho no cangote, levantou-se, agarrou os
bracinhos que lhe caíam sobre o peito, moles, finos como
cambitos. Sinhá Vitória aprovou esse arranjo, lançou de novo a
interjeição gutural, designou os juazeiros invisíveis.
E a viagem prosseguiu, mais lenta, mais arrastada, num
silêncio grande. (...)
As manchas dos juazeiros tornaram a aparecer, Fabiano
aligeirou o passo, esqueceu a fome, a canseira e os ferimentos. As alpercatas dele estavam gastas nos saltos, e a embira
tinha-lhe aberto entre os dedos rachaduras muito dolorosas.
Os calcanhares, duros como cascos, gretavam-se e sangravam.
Num cotovelo do caminho avistou um canto de cerca,
encheu-o a esperança de achar comida, sentiu desejo de
cantar. A voz saiu-lhe rouca, medonha. Calou-se para não
estragar força.
Deixaram a margem do rio, acompanharam a cerca,
subiram uma ladeira, chegaram aos juazeiros. Fazia tempo
que não viam sombra.
Sinhá Vitória acomodou os filhos, que arriaram como
trouxas, cobriu-os com molambos. O menino mais velho,
passada a vertigem que o derrubara, encolhido sobre folhas
secas, a cabeça encostada a uma raiz, adormecia, acordava.
E quando abria os olhos, distinguia vagamente um monte
próximo, algumas pedras, um carro de bois. A cachorra
Baleia foi enroscar-se junto dele.
Estavam no pátio de uma fazenda sem vida. O curral
deserto, o chiqueiro das cabras arruinado e também deserto,
a casa do vaqueiro fechada, tudo anunciava abandono.
Certamente o gado se finara e os moradores tinham fugido.
(...)
Entrava dia e saía dia. As noites cobriam a terra de
chofre. A tampa anilada baixava, escurecia, quebrada apenas
pelas vermelhidões do poente. Miudinhos, perdidos no
deserto queimado, os fugitivos agarraram-se, somaram as
suas desgraças e os seus pavores. O coração de Fabiano bateu
junto do coração de Sinhá Vitória, um abraço cansado
aproximou os farrapos que os cobriam. Resistiram à fraqueza,
afastaram-se envergonhados, sem ânimo de afrontar de novo
a luz dura, receosos de perder a esperança que os alentava.
( RAMOS, Graciliano. Vidas Secas. Rio de Janeiro & São Paulo:
Editora Record, 1996. )
Um recurso relevante na construção textual é o uso de personificações. Uma dessas personificações verifica-se em:
A) “ Os calcanhares, duros como cascos, gretavam-se e sangravam. ” (11º§)
B) “ (...) voo negro dos urubus fazia círculos altos em redor de bichos moribundos .” (5º§)
C) “ A catinga estendia-se, de um vermelho indeciso salpicado de manchas brancas que eram ossadas. ” (5º§)
D) “ Pensou nos urubus, nas ossadas, coçou a barba ruiva e suja, irresoluto, examinou os arredores. ” (9º§)
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