PortuguêsMorfologia - verbos
- (IBFC 2015)
Texto
O amor acaba
(Paulo Mendes Campos)
O amor acaba. Numa esquina, por exemplo, num domingo
de lua nova, depois de teatro e silêncio; acaba em cafés
engordurados, diferentes dos parques de ouro onde começou
a pulsar; de repente, ao meio do cigarro que ele atira de raiva
contra um automóvel ou que ela esmaga no cinzeiro repleto,
polvilhando de cinzas o escarlate das unhas; na acidez da
aurora tropical, depois duma noite votada à alegria póstuma,
que não veio; e acaba o amor no desenlace das mãos no
cinema, como tentáculos saciados, e elas se movimentam
no escuro como dois polvos de solidão; como se as mãos
soubessem antes que o amor tinha acabado; na insônia dos
braços luminosos do relógio; e acaba o amor nas sorveterias
diante do colorido iceberg, entre frisos de alumínio e espelhos
monótonos; e no olhar do cavaleiro errante que passou pela
pensão; às vezes acaba o amor nos braços torturados de
Jesus, filho crucificado de todas as mulheres; mecanicamente,
no elevador, como se lhe faltasse energia; no andar diferente
da irmã dentro de casa o amor pode acabar; na epifania da
pretensão ridícula dos bigodes; nas ligas, nas cintas, nos
brincos e nas silabadas femininas; quando a alma se habitua
às províncias empoeiradas da Ásia, onde o amor pode ser
outra coisa, o amor pode acabar; na compulsão da simplicidade
simplesmente; no sábado, depois de três goles momos de gim
à beira da piscina; no filho tantas vezes semeado, às vezes
vingado por alguns dias, mas que não floresceu, abrindo
parágrafos de ódio inexplicável entre o pólen e o gineceu
de duas flores; em apartamentos refrigerados, atapetados,
aturdidos de delicadezas, onde há mais encanto que desejo;
e o amor acaba na poeira que vertem os crepúsculos, caindo
imperceptível no beijo de ir e vir; em salas esmaltadas com
sangue, suor e desespero; nos roteiros do tédio para o tédio,
na barca, no trem, no ônibus, ida e volta de nada para nada;
em cavernas de sala e quarto conjugados o amor se eriça e
acaba; no inferno o amor não começa; na usura o amor se
dissolve; em Brasília o amor pode virar pó; no Rio, frivolidade;
em Belo Horizonte, remorso; em São Paulo, dinheiro; uma
carta que chegou depois, o amor acaba; uma carta que chegou
antes, e o amor acaba; na descontrolada fantasia da libido; às
vezes acaba na mesma música que começou, com o mesmo
drinque, diante dos mesmos cisnes; e muitas vezes acaba
em ouro e diamante, dispersado entre astros; e acaba nas
encruzilhadas de Paris, Londres, Nova Iorque; no coração que
se dilata e quebra, e o médico sentencia imprestável para o
amor; e acaba no longo périplo, tocando em todos os portos,
até se desfazer em mares gelados; e acaba depois que se viu
a bruma que veste o mundo; na janela que se abre, na janela
que se fecha; às vezes não acaba e é simplesmente esquecido
como um espelho de bolsa, que continua reverberando sem
razão até que alguém, humilde, o carregue consigo; às vezes
o amor acaba como se fora melhor nunca ter existido; mas
pode acabar com doçura e esperança; uma palavra, muda ou
articulada, e acaba o amor; na verdade; o álcool; de manhã, de
tarde, de noite; na floração excessiva da primavera; no abuso
do verão; na dissonância do outono; no conforto do inverno; em
todos os lugares o amor acaba; a qualquer hora o amor acaba;
por qualquer motivo o amor acaba; para recomeçar em todos
os lugares e a qualquer minuto o amor acaba.
A opção do autor por enunciar, no título do texto, o verbo “acabar" no presente do Indicativo cumpre o seguinte papel semântico:
A) revela uma ação que ocorre no momento em que é enunciada.
B) indica uma ação presente com valor de passado.
C) aponta para uma ideia que assume sentido de futuro, uma previsão.
D) ilustra uma ação que se repete com “status" de verdade absoluta.
E) denota uma possibilidade relacionada ao presente da enunciação.
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